segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

E para que tanta razão?



       Eduard, em "Afinidades Eletivas", de Goethe, tenta convencer o amigo Capitão a render-se a sua paixão, contrariando todas as convenções e expectativas da sociedade. Trata-se de um acordo perfeito, no qual o próprio Eduard estaria livre para render-se à própria e alucinada paixão por Ottilie, divorciando-se de sua esposa Charlotte e ao mesmo tempo possibilitando a felicidade de seu amigo e sua esposa, que igualmente vivem um amor proibido. Uma natural troca de pares, em cujo final todos estariam livres para a satisfação dos próprios desejos, sob o preço de quebra de todas as convenções sociais da época.

        Seu amigo Capitão usa então os argumentos da razão, explicando os motivos pelos quais tanta destruição contrariaria toda a paz estabelecida,  e desnecessariamente. Para que tanto tumulto, se a ordem existente só trazia benefícios? Ao que Eduard, brilhantemente, conclui: observando-se os fatos sob os argumentos da razão, tudo é direito e tudo é correto, já que para tudo há uma explicação, um peso na balança.

        Fiquei verdadeiramente impressionada com essa conclusão. De fato, utilizando os argumentos da lógica e da razão, podemos explicar tudo o que existe e ocorre. Não existe certo ou errado, nunca. E isso não é algo ruim. Na realidade, certo e errado são meros juízos de valor, que variam de acordo com o tempo, o lugar e os costumes. Portanto... tudo o que existe é válido e aceitável, correto?

        Ah, correto é, mas…  Se tudo está bom, se tudo pode ser aceito, o que impulsionaria as mudanças? Não, não é a razão. O que impulsiona as mudanças é a emoção, essa Selvagem Alucinada que tudo pisoteia e tudo destrói. Por conta dela, não nos conformamos. Nem sabemos o porquê do inconformismo, só sabemos que ele existe e nos incomoda. Sentimos que não queremos do jeito que está, simplesmente, sem qualquer explicação. E vemos a razão enlouquecida, porque ela não encontra uma explicação concreta e palpável para o modo de agir da emoção. E assim, contra tudo o que está estabelecido, sem questionar as nossas ações, agimos. E quebramos tudo. Para construir de novo, de outro jeito. E assim mudamos o curso da nossa história.

        Não se trata de desprezar os argumentos da razão. A razão nos conforta, já que tudo explica. Entretanto, creio que sempre devemos ouvir aquele sentimento de insatisfação que nos emociona e nos faz pulsar. Na realidade, é ele o responsável pelo nosso movimento. Quem apenas racionaliza, fica estagnado. Nada justifica mudar. Nada justifica ousar. Afinal, para que arrebentar, se no final tudo volta à sua antiga paz? 

        E eu respondo a essa pergunta tão lógica de maneira simplesmente assim, emocionada: para nada, só para viver, minha gente, para viver…
 

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

É melhor ser alegre que ser triste

 
"Pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza; é preciso um bocado de tristeza, senão não se faz um samba não" - Vinícius de Moraes
    
        Bom, estou triste e por isso sem qualquer inspiração bacana. Odeio escrever textos depressivos. O que me deixa mais triste ainda, porque escrever é um atividade que me deixa muito feliz. O que então me coloca num círculo vicioso de tristeza, que horror.

        Meus amigos Inaiá e Zé Eduardo querem me convencer que não, que a tristeza é inspiradora. Que as grandes obras primas do cinema, literatura e da música surgiram em momentos de tristeza. Sabe, acho isso não.  Porque tristeza para mim só acontece quando me deparo com uma situação em que não consigo encontrar uma solução agradável. Ou seja, não há esperança de solucionar o que me incomoda, logo tenho que me conformar. Conformar com aquilo que não queria que fosse desse jeito, e sim de outro. E assim, sem esperança, fico quietinha em meu canto, esperando tudo passar.

        Mas existe ainda um outro sentimento, que as pessoas pensam tratar-se de tristeza, mas ainda não é tristeza. Na realidade, é uma espécie de desespero. E não é tristeza ainda porque restam esperanças. E nessa hora entram a arte, a inspiração. São gritos de desespero, pedidos de salvação. Por isso tão lindos (quer dizer, às vezes nem tanto, depende do tipo de desespero da pessoa e da pessoa, é lógico). São puros, surgem a partir da emoção em estado bruto. A pessoa desprende-se de seus medos, de seus orgulhos, seus condicionamentos, sua boa ou má educação e simplesmente clama pela solidariedade de outro ser humano. E assim, sendo pura, consegue tocar a alma de cada um de nós. Porque chega naquele lugarzinho que escondemos todos os dias. Se aconchega, faz com que nos sintamos próximos e íntimos do artista, e temos vontade de conversar com ele, cuidar dele, e mostrar também nossos medos e ansiedades.

        O final de um grande amor, por exemplo. Ninguém escreve uma poesia bonita, uma linda canção ou pinta um quadro maravilhoso para alguém sem ter a esperança de que um dia tudo irá dar certo. O artista se mostra mais um pouco para quem ama, pedindo um último socorro. Ele se agarra ainda a um fiozinho de esperança, uma oportunidade pequena, bem pequena, e que ainda se vislumbra, de que tudo um dia irá se acomodar. Mas imaginem se esse mesmo artista tivesse a certeza absoluta de que nada fará com que o ser amado retorne. Ele simplesmente não teria forças para empreender esforço algum.

        Pronto, espero ter convencido vocês. Mas sabe qual é a loucura agora? Me diverti absurdamente escrevendo esse texto. Então, me peguei pensando: será que eu estou realmente triste ou é só desespero? Ah, será então que alguém ainda vai me socorrer?

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

A vida é bela?

        
        Bem, o filme é antigo. Mas desde que assisti "A vida é bela", de Roberto Benigni (que, diga-se de passagem, não gostei), sempre me ficou a dúvida. Até que ponto podemos mentir por amor?

        No filme, temos um pai que distorce a realidade para que o filho não sofra. Não chegam a ser mentiras, mas distorções de realidade. Do seu esforço, resulta que o garoto passa por todo o horror do holocausto sem se dar conta do que ocorreu. Não sofreu, não ficou traumatizado.

        Acho que esse é o sonho de todos os pais, de todos aqueles que amam. Evitar que pessoas queridas sofram, proteger de todos os males. Mas nesse ponto, me pergunto: o que aconteceu com esse garoto, ao crescer e tomar consciência de tudo o que ocorreu?

        Pessoalmente, acredito que temos que lidar dia após dia com as agruras de nosso cotidiano. Ao nos depararmos com um obstáculo, não devemos fingir que ele não existe. Devemos aprender a contorná-lo ou, se assim não for possível, enfrentá-lo ou mesmo derrubá-lo. Dificuldades e fatos que não nos agradam sempre existirão. Ao lidar com eles, aos poucos, crescemos. Metabolizamos. Ou enveredamos por outro caminho, se assim entendermos mais confortável para nós. Temos a chance de escolher.

        Por isso, acho que mentiras ou ilusões, ainda que bem intencionadas, causam danos gravíssimos.  A possibilidade da verdade nua e crua vir à tona sempre é muito grande. E nesse momento, a pessoa protegida, que nunca foi preparada para enfrentar a realidade como se configura, e nem teve a oportunidade de escolher se queria viver em tal realidade, já que a desconhecia, é obrigada a lidar com os fatos, em sua totalidade. De uma só vez, sem qualquer preparo.

        Imagino então o garoto do filme de Benigni, que sequer teve a chance de dizer adeus a seu pai. Que acreditava estar vivendo em um acampamento de férias, em uma gincana. E descobre que o adeus de seu pai foi rumo a uma morte brutal e sem qualquer sentido. Descobre que todas as pessoas ao seu redor fingiram, o tempo todo, para que ele não sofresse. E que ele nunca pôde fazer nada por elas, nem retribuir todo o carinho recebido e demonstrar sua gratidão. Imagino a sua sensação de impotência, e o medo que deve ter passado depois, no decorrer da vida, questionando o tempo todo se sua realidade é mesmo aquela que ele vê, ou se as pessoas estão mascarando-a, o tempo todo.

        É, a vida nem sempre é bela. Mas temos que aprender, desde cedo, a ter consciência disso. Porque, aos poucos, conseguimos fazer aquilo que não é tão belo, bonito. Corrigimos, enfeitamos, retiramos, adaptamos. Controlamos o que queremos ou não que exista. Mas é muito mais penoso transformar uma obra pronta, acabada, defeituosa, em algo bonito. Mais penoso e muito mais dolorido.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Pilar Del Río: Ver, ouvir e... FALAR!


        
        "- Pilar, acabei de dizer uma coisa linda, o que você acha? Eu tenho idéias para romances, e você tem idéias para a vida.
         - Ah, que lindo.
         - O que você acha que é mais importante?
         - A vida, é claro."


          Acabei de assistir ao documentário "José e Pilar". Relatando a criação do romance "A viagem do elefante", mostra, na realidade, a mais linda história de amor de todos os tempos. E eis aqui o que faz a diferença nessa história de amor: Pilar NÃO é a musa inspiradora de Saramago. Não, ela não o inspira. Toda inspiração de Saramago está dentro dele mesmo, ele não precisa de ninguém mais. Além disso, reservar a uma mulher como essa o papel de musa seria atribuir-lhe uma função estática. E estática é tudo o que Pilar não é. Pilar é a força motriz do gênio. Ela move, impulsiona. É focada, prática, racional, irascível. Luta com todas suas forças pelo que entende ser correto, sem se importar se agrada ou não. Luta pelo que acredita ser íntegro e justo. É esse o fascínio desse casal. Seus talentos são próprios, e nenhum deles precisaria do brilho do outro para existir. Mas optaram por seguir juntos, e o mundo agradece essa escolha.


           Pilar controla o tempo de Saramago, para que ele não disperse. Controla suas entrevistas, o que pode ser dito, o que não deve ser dito. Seus atos, seu comportamento diante do público. Suas viagens, conferências. Seleciona sua correspondência. Chega a querer ir embora quando ele arrisca a própria vida numa empreitada (a subida da Montanha Branca, aos 70 anos, o Everest de Saramago) que ela entende ser totalmente desnecessária. Para ele, um desafio. Para ela, um absurdo que ele possa eventualmente privar o mundo de seus escritos (caso um acidente tivesse ocorrido) por um desafio que em nada resulta de concreto. Sugere que vá bordar, oras. É tão desafiador quanto e pelo menos o resultado fica, diz. É brilhante, inteligente, e sabe disso. Sabe que seus pontos de vista são diferentes dos de seu marido, e não se intimida em defendê-los até as últimas conseqüências. Mas é lindo ver seus olhos brilharem ao escutar cada palavra proferida pelo amado. Toma por obra de vida fazer a genialidade e o lirismo dele públicos. Não se importa que ele brilhe, não se sente ofuscada, tem consciência de sua própria inteligência. É o brilho dele que a motiva a viver e realizar cada vez mais.

          Saramago, por outro lado, reconhece mais que ninguém a genialidade de sua esposa. Admira nela tudo o que nele não existe. Ela é incansável e o defende como uma leoa. E ele se rende, sem qualquer constrangimento, às rédeas seguras dela. Se entrega completamente a essa mulher, sem qualquer pudor. Ri de seu temperamento explosivo, provoca, instiga. E seus olhos também brilham de admiração por ela. Diz em determinado momento que, aos 84 anos, queria apenas ter duas coisas: tempo, para poder continuar trabalhando em seus escritos, e vida, para continuar vivendo ao lado de sua mulher.

           A história me impressionou,  e muito. Difícil traduzir em palavras os olhares, carinhos e gestos trocados pelo casal. As chacotas e as implicâncias mútuas. Saramago com sua fina ironia e delicioso mau humor é simplesmente apaixonante. Encantador pensar ainda que estamos diante de uma história real, e não uma ficção. Mas realmente é Pilar quem não me sai da cabeça. Imagino o amor que fez com que essa jornalista tão brilhante não se importasse em fazer do marido a sua obra de vida. Não digo que ela tenha se anulado. Um homem como Saramago jamais seria tão apaixonado por alguém que vivesse à sua sombra. Digo apenas que para ela seu trabalho foi concretizar os sonhos do gênio, tão dispersivo e sonhador, ainda que muitos imaginassem que ela era apenas a esposa. Sem a necessidade de demarcar o próprio espaço. O que é possível apenas em um amor em que a vaidade não tem lugar, mas sim o respeito e a admiração. Não há o que provar, há o que  construir. Juntos e generosamente.
   
   

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Como nasceu a Menina Má

        
       Sinto muita necessidade de dizer isso, por questão de justiça: Mozi criou a menina má. Antes, o que existia era apenas uma menina mimada. Ele chegou devagarzinho, mostrando as afinidades. Chico Buarque, mal sabe você que foi o alcoviteiro, com seus romances, seus amores, suas mulheres agoniadas. Depois, mostrou todo o seu cavalheirismo e gentileza sem fim. Me conquistou assim. Era um príncipe realmente, o sonho de qualquer menina mimada.

        Os primeiros meses foram de sonho, cercada de seus cuidados infindáveis. Defendendo meu gênio ruim contra todos. Me protegendo do mundo e de mim mesma.

        Mas, de repente, o príncipe cansou de seu papel. Cansou de cuidar da menina cada vez mais insuportavelmente mimada. E resolveu ser ele mesmo.

         Foi um choque. Não dava pra entender o que estava acontecendo. Não adiantava mais fazer drama, chorar, espernear, fazer biquinho. Nada mais comovia. E eu dramatizava: "você não me ama mais", buá. Até o fatídico dia numa trilha na Ilha Grande que mudou a minha vida, para sempre. Estávamos andando há um tempão, erramos o caminho, a trilha cada vez mais horrorosa. Empaquei. Falei que não ia mais, fiz bico, reclamei, surtei de ciúme por causa da namorada do amigo, que eu achava que estava recebendo mais consideração que eu. E o insensível simplesmente respondeu: "Então fica aí. Você é fraca." Ahn?????

          Pronto. Nascia a menina má. Fraca, eu? Incapaz, eu? Fiquei vermelha de raiva e disparei no meio do mato. Nunca mais permiti que o medo me impedisse de fazer alguma coisa. Sou descoordenada, desequilibrada, minha consciência corporal é um lixo. Mas ninguém percebe isso, tamanha é minha vontade de vencer essas deficiências. E  o medo, como aprendi a gostar de desafiar meu medo.

          Levei isso para todos os aspectos da minha vida. Nunca mais o medo me paralisou nem me venceu. E o nosso relacionamento mudou a partir desse dia. Passou a ser uma parceria, e não mais uma relação de proteção. As discussões começaram a surgir, os conflitos eram aterrorizantes, dois titãs disputando espaços. E sofremos muito juntos, e crescemos juntos, e fomos muito felizes juntos. Mas uma hora parecia que não havia mais pra onde ir. E tivemos que procurar caminhos diferentes. E eu apresentei a ele a menina mimada de novo, chorei, fiquei com medo. Mas ele me disse: "eu vou embora e fico tranqüilo, porque sei que você não precisa de mim". Mas eu precisei, precisei muito. Mas ele acreditou que eu não precisava, e não voltou. E eu venci mais esse medo. De ficar sozinha.

          Não caminhamos mais juntos. Mas sabemos que um construiu o outro. Viajamos juntos outro dia, e ele nem sabe, mas percebi que ninguém nesse mundo sabe como ele a medida exata de quando cuidar de mim e quando deixar me virar. Quando aceitar e quando reprovar. Quando falar e quando calar. Como fazer com que eu me sinta a menina mais esperta do mundo.

          Tentamos caminhar juntos de novo, mas não conseguimos. Não há mais o que construir. Somos dois titãs e cumprimos nossa parte um com o outro. Agora é hora de outras descobertas. Coragem. Mas é sempre em você que eu penso quando sinto medo, Mozi…

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Quem ama desconstrói

           
            Eu adoro conflitos. É isso mesmo, eu sou um conflito ambulante. Vivo em disputa com qualquer um, especialmente comigo mesma. Adoro que apresentem opiniões diferentes das minhas, para eu poder contra argumentar. Gosto muito das pessoas que pensam diferente de mim. Na verdade, eu não quero convencê-las de nada. Quero é que elas me convençam de que estou errada. Muito, muito bom quando isso acontece. Significa que descobri inutilidades em mim mesma.

            Sou assim com os amigos mais queridos, o tempo todo. Provoco, enfrento, questiono, desconsidero. Porque eu quero que eles saiam da própria casca. Ou me tirem da minha. Quanto mais gosto, mais provoco. Nem todo mundo entende. Vem daí a minha fama de má.

            Isso acontece com muito mais intensidade quando me apaixono. Provoco e espero ser provocada. Amo muito mais quando me mostram a minha imperfeição. Quando me tiram da minha teimosia, do meu orgulho. Quando me obrigam a ter um ponto de vista diferente. Lógico que também quero fazer o mesmo. Provocar até o limite. Mas, na paixão, quando a lógica se esvai, os limites são diferentes. A emoção impulsiona. Tudo é mais violento, mais intenso. As descobertas são mais doloridas, as mudanças são vomitadas. Tem a vontade de desistir, mas tem a vontade de ficar. É inebriante. Os limites das mudanças vão até onde não há o assassinato de nós mesmos. Nem mais, nem menos. O amor morre quando se ultrapassa essa tênue linha. Por isso a minha paixão se alimenta dos conflitos: são duas pessoas descobrindo até onde podem ceder, sem se aniquilar.

           Podem dizer que não aceito o outro como ele é. Mas não é isso. Simplesmente não aceito que o outro não seja tudo o que ele pode ser. Quero tirar dele tudo o que atrapalha, atravanca. E quero que ele faça o mesmo comigo. Acho respeito em excesso preguiça. É sempre mais simples aceitar. Mas aceitar é permitir estagnar. E estagnação pode ser algo bom para alguns, mas para mim, é como tirar meu oxigênio. Me mata.