segunda-feira, 28 de maio de 2012

E agora, Crisinha?


   Meu paizinho ficou velho. Pois é, aconteceu. Foi devagarinho, eu nem notei direito. As falhas no sistema foram ocorrendo de maneira tão sutil e gradual, que nem me dei conta do que estava acontecendo. Mas agora que percebi tomei um susto.

   A primeira vez que me dei conta disso foi num restaurante. Fui pedir senha para aguardar uma mesa, e a mocinha me disse que daria prioridade porque eu estava com pessoas idosas. Parei e olhei para trás e vi meu pai e minha mãe. Como assim, pessoas idosas? Para os meus olhos ainda eram o meu alicerce, aquele que nunca se rompe, mas a outros olhos eram pessoas idosas. Mas sim, olhei para o meu pai e percebi que realmente alguma coisa era diferente do que sempre foi. 

   Os ouvidos começaram a escutar cada vez menos, e ele, que tinha reflexos tão rápidos, agora dirige devagar. Sabe aqueles velhinhos que atravancam a nossa passagem na rua? Pois é, meu pai, que sempre ultrapassou todos, implacável, agora dirige assim. Aquela curiosidade que sempre me inspirou a aprender, agora também obedece a um ritmo mais lento. O raciocínio demora um pouco, as respostas tardam a vir. As nossas conversas agora são pausadas, para que ele possa compreender e responder depois de pensar um pouco. O corpo que, embora pequeno, sempre foi tão forte e tão disposto, agora se cansa rápido. Sempre tão preocupado com o asseio e a aparência, agora escolhe qualquer roupa no armário para vestir.

   São vários os médicos, vários os remédios, vários os exames, difícil de saber se isso faz bem ou mal. Mas olho para ele e sinto que tudo mudou, mesmo. Difícil de entender, mais difícil ainda de aceitar, embora seja o ciclo natural da vida.

  Esse velhinho é o homem que me ensinou a sonhar correr o mundo, me mostrando lugares tão diferentes e tão distantes num mapa nas manhãs de domingo. Que me levava, com minha mãe,   para passeios em parques nos finais de semana, para que a filhinha única introspectiva e desengonçada se movimentasse um pouco e aprendesse a brincar com outras crianças. Que voltava do trabalho, todos os dias, com um chocolate nos bolsos.  Que me ensinou a andar de bicicleta. Que me acompanhou nos primeiros shows de música da minha vida. Que acordava na madrugada para ir me buscar nas minhas primeiras baladinhas adolescentes. Que sempre foi amado por todos os cães e gatos, da casa, da rua, de qualquer lugar. Que me ensinou a falar a verdade, sempre, mesmo que as conseqüências não fossem boas. Que me ensinou que de nada adianta se dar bem burlando regras e trapaceando. Que sempre me disse para honrar compromissos, mesmo que a vontade fosse de ficar em casa sem fazer nada. Que sempre deixou bem claro que, dentre todas as crianças, eu era a mais importante da vida dele. Que sempre me protegeu, embora nem sempre me defendesse. Que nunca soube abraçar, nem beijar, nem dizer palavras bonitas, mas me ensinou que amor é mais que isso, é cuidado, é presença, é o poder contar, sempre.

  Eu não sei o que fazer. Tenho medo de não saber cuidar dele como ele cuidou de mim. Mas tenho mais medo ainda de que ele perceba que eu estou com tanto medo assim.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Ensina-me a viver



   Sou uma devoradora de livros, desde criança. Devoradora de histórias, veja bem, porque tudo o que é real demais me cansa. Até hoje não consigo me concentrar em leituras técnicas ou descritivas, o interesse fica próximo de zero.

   Gosto mesmo é de gente. Gosto de saber histórias sobre outras pessoas. Gosto de saber como elas pensam, como elas reagem às diversas situações. Gosto de viver outras vidas.

   Porque ler romances tem disso, essa coisa de viver outras vidas. Quer coisa mais fascinante do que ver um personagem numa situação parecida com a sua, e assistir como ele pensa e reage? E ver a si próprio naquela pessoa, cometendo os mesmos erros? Ou encontrando as soluções possíveis? Ou entendendo o porquê de suas reações?

   Alguns personagens são marcantes em minha vida. Todas mulheres fortes e determinadas, claro, cada uma fascinante a seu modo. Cathy, do Morro dos Ventos Uivantes, com sua passionalidade selvagem. Kate, de A leste do Éden, com uma maldade sem igual, acho que nunca houve alguém tão perturbado como ela. Katia, dos Irmãos Karamazov, aparentemente tão passiva mas tão decisiva no rumo da história. Emma, de Um dia, às vezes é tão assustadoramente eu que já até tive medo de ter o seu mesmo fim trágico.

  Tem também os personagens escritores e os cronistas. Clarice Lispector e Danuza Leão que quase me ensinaram a ter pose de fina. Martha Medeiros que parece minha amiga confidente. Lendo Fabrício Carpinejar me sinto menos ridícula e exagerada. Eduardo Galeano tem sonhos de um mundo melhor que fazem meu coração bater mais forte. Anais Nin me irrita mas se parece tanto comigo, às vezes…

   Um livro com uma história ou um causo bem escrito transforma a vida da gente muito mais que um livro de auto-ajuda. Porque auto-ajuda é como conselho de pai e mãe: a gente sabe que tem que fazer daquele jeito, como é o certo, mas a gente escuta e esquece. Porque conselho não foi feito para ser seguido, a gente sempre faz mesmo é aquilo que temos vontade. E não adianta ficar se informando, esquematizando a fórmula ideal daquilo que parece ser correto, lá no fundo mesmo a gente sempre vai querer algo que não tem nada a ver com o correto. E um dia a gente explode, faz tudo errado, e dane-se a auto-ajuda. 

   Já aprender com histórias é outra coisa. Você se vê na situação, parece que vive aquilo. E tem a chance de ver o resultado de suas ações, de fora. E aí entende o que está acontecendo, ou o que não está acontecendo. E vai aprendendo aos poucos a viver. Ou aprendendo a entender a vida. Afinal, só se aprende viver vivendo, e ler histórias é uma chance de testar várias vidas, sem ter que alterar nada na sua própria.

   Engraçado é ser uma leitora tão contumaz e continuar fazendo burradas vida afora. Engraçado nada, trágico. Ou não. Devoradores de livros e seres imaginativos como eu são aqueles que aparentemente cometem mais erros. Mas é que só erra quem vive. E quem lê e imagina muito vive demais, vive tudo intensamente, até o último suspiro. E bate, e volta, e tenta, e erra, e até acerta às vezes, mas não cansa, vai de novo, para sentir, sentir tudo o que se conseguir, e procurar mais respostas, incessantemente. Não consegue jogar nenhum pedacinho de vida por baixo do tapete.

   Quer saber? Eu quero mesmo é viver, viver para conhecer histórias, para contar histórias. Porque quem diz que essa vida é uma só e tem que ser vivida de uma maneira tranqüila e exata são os livros de auto-ajuda. Ah, e o pai e a mãe da gente.